2011/10/05


(Co)incineração:
mais vale um «depois-mento» hoje
que um «depois-minto» amanhã 
Adelaide Chichorro Ferrreira

Professora na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra,
Presidente do núcleo de Coimbra da Quercus

Texto lido a 28.10.2011 na Praça da República, em Coimbra*,
e publicado a 5 de Outubro de 2011

(*Tive em conta, na reconstituição que a memória me permitiu fazer, alguns acrescentos orais feitos na própria ocasião e o facto de o texto na altura ainda conter algumas gralhas e imprecisões, pois tinha sido redigido na véspera, a meio da noite, e minutos antes do próprio evento…)

                Não estava a contar que me quisessem aqui, de peito aberto, falando de algo que consumiu muitos momentos da minha vida emocional e intelectual. Não estou habituada a que, num assunto como este, no qual me envolvi anos a fio sem me considerar protagonista, me peçam opinião. Como mulher, casada com quem mais directamente acompanhou o assunto do lado da contestação, apanhei muitas vezes esta controvérsia pela metade. Ouvi metade  das conversas telefónicas, acompanhei-a por interposto meio de comunicação, isto é, não estive no centro mas na periferia do debate.
            Escrevi na altura, não obstante, muitos textos que o vento entretanto levou. Engordei até um bocado, por gastar as minhas horas livres a informar-me e a escrevê-los, em vez de ir para um ginásio. Na verdade, interessei-me por esta temática nos interstícios da minha actividade de mãe e de professora, e muitas vezes a desoras. Mas hoje penso que, em larga medida, esta luta foi ganha pelo movimento que se gerou e de que este modestíssimo e quase invisível contributo faz parte, entre muitos outros contributos de figuras públicas que hoje desempenham cargos de muita relevância regional. E que deviam lembrar-se do que na altura defenderam.
            Pediram-me um depoimento para a manifestação de hoje, aqui, na Praça da República. Não sei se, no estado em que actualmente se encontra a República Portuguesa, em plena crise de extremo endividamento, me é possível trazer-vos mais do que um simples «depois-mento», isto é, um lamento a posteriori: que acontece, mais precisamente, depois de um tribunal conimbricense se ter decidido pela viabilização do processo de queima de resíduos tóxicos em cimenteiras, processo esse que a população há uns anos atrás tão veementemente condenou.
            Podemos lamentar ou queixar-nos, sim! Nem sempre isso está na moda ou é sequer recomendável, mas é o que faço hoje, assim a consciência e a memória mo determinam. Não duma forma derrotista, mas com a dose de inconformismo de que ainda sou capaz, ao fim de todos estes anos em que a luta contra a co-incineração se vem desenrolando aqui em Coimbra. E faço-o também com algum optimismo.
            Particularmente hoje, devido à cerimónia de doutoramento honoris causa atribuído pela Universidade de Coimbra ao resistente  Xanana Gusmão (onde estive presente e de que acabo de regressar), o lamento não se afiguraria, à primeira vista, como a modalidade mais eficaz ou «construtiva» de comunicar, mas a verdade é que ele se justifica plenamente, porque é lícito cuidar das nossas emoções se elas servirem para nos fazerem reflectir e com isso nos permitirem melhorar as decisões que vamos a par e passo tomando.
            É também para isso que serve a Língua Portuguesa, que com a referida cerimónia celebrámos hoje aqui em Coimbra: é ela que dá forma às nossas emoções, sensações ou ideias, permitindo generosamente que a enriqueçamos com as palavras que melhor exprimem esse pensamento de vivências e reflexão feito - mesmo que certos vocábulos não existam no dicionário, mas apenas na nossa inspiração ou imaginação momentânea, e mesmo que ainda sejam relativamente pouco conhecidos ou debatidos pelos cidadãos, incluindo os mais jovens, outros termos como poluentes orgânicos persistentes, dioxinas, furanos, metais pesados (entre eles o mercúrio das lâmpadas eficientes que adquirimos por aí), etc. Designações que nomeiam aquilo que sai pela ´chaminés das cimenteiras, se não tivermos o cuidado de estar atentos.
            Somos responsáveis por ir adaptando a nossa língua aos complexos problemas que, como cidadãos lusófonos, necessitamos de poder exprimir adequadamente, em nome da vida - toda a vida (a da natureza também) - e em nome do futuro. O sentido dos neologismos que coloquei no título do presente texto espelha bem o que sinto neste momento: é que das decisões que hoje se tomam podem vir a surgir «depois-mentos», isto é, lamentos ou queixas futuras. E é previsível que, uma vez tomada uma decisão que se revele, mais tarde, pouco adequada, o «depois-mento» que ela suscitar se venha a transformar até num «depois-minto»! Numa matéria como a questão dos resíduos, quer os descrevamos como tóxicos ou não, é bem possível que uma decisão errada nos possa vir a iludir ou a enganar mais tarde, ao ponto de nos fazer negar a realidade ou mentir a nós mesmos sobre ela.
            Já o constatámos em Fukushima recentemente: apesar da enorme magnitude da catástrofe, pouco se fala dela. Ou talvez por isso mesmo: para não sobrecarregar as pessoas com a ansiedade que lhes corrói a já combalida capacidade de sobrevivência, pouco se refere o assunto, a fim de não fazer disparar os índices de doenças cardio-vasculares.
            E é assim também com a (co)incineração: uma vez viabilizado o processo, há que mentir a nós mesmos, porque há muito quem não queira ou não possa ser incomodado com problemas dessa natureza. Para quê uma pessoa preocupar-se, se essa mesma preocupação atenta contra a sua saúde, do mesmo modo que sucede, de forma mais direta, com a poluição por dioxinas ou por mercúrio? Alguma inépcia ou fatalismo derrotista (esse mesmo que nos faz não pensar, a fim de que dessa forma ilusória obliteremos também as emoções que nos invadem, quando estamos perante injustiças…) poderá fazer-nos reconduzir a eventual ocorrência de mortes prematuras em consequência da (co)incineração de resíduos, e o roubo de qualidade ou de anos de vida às populações afectadas pela poluição das cimenteiras, a uma espécie de determinismo ou «fado» que, no estado actual do pensamento ambientalista, e até mesmo da ciência, não se deve assumir com tanta ligeireza.
            Será um «depois-minto» (um engano, uma ilusão, e não um depoimento verdadeiramente informativo ou esclarecedor) aquilo que, após o erro decisório cometido de permitir acriticamente a (co)incineração, é expectável que suceda.        
            É também ilusório conceber a (co)incineração como uma consequência lógica mas incontornável da co-habitação nas cidades.  O prefixo «co» nada indicia que faça supor algum tipo de colaboração ou de solidariedade: na verdade, apenas umas regiões (e nem por isso as mais densamente povoadas) são massacradas com o ónus da queima de resíduos tóxicos, sendo geralmente muito desproporcional o mal que se faz a uns, por poucos que sejam, em resultado dos «bens» (ou males?) que a economia traz aos outros.
            Cinicamente, há quem ache que sempre é melhor que as coisas se passem assim do que permitir que toda essa poluição incida sobre zonas muito mais densamente povoadas, em que o número de eventuais afectados seria muito maior, assim como, obviamente, o número de votantes.
            Atenção, não estou aqui a colocar umas regiões contra as outras: apenas estou a frisar que, por poucos que sejam os afectados pela poluição em determinada região, eles não deixam de ser gente por isso, merecendo ser tão bem tratados como os restantes. Não podemos iludir-nos a nós mesmos com os números: há também pessoas mais sensíveis do que outras à poluição ambiental, e essas pessoas merecem o mesmo respeito que as demais.
            Além desta constatação, uma outra se me foi tornando clara ao longo dos tempos:  há em política ambiental diferenças que fazem toda a diferença e outras que são irrelevantes. Desde o início de toda esta discussão em torno da (co)incineração que se me tornou irrelevante a tentativa de distinguir com muito rigor científico entre co-incineração e incineração dedicada, ou outras formas análogas de queimar resíduos, como é o caso da pirólise.
            Num dos primeiros comunicados que a Associação Cívica Pro-Urbe, a cuja direção pertenci, fez sair sobre este assunto aqui em Coimbra, fiz questão de convencer o saudoso João Mesquita, que comigo se encarregou de o redigir, a colocar o prefixo «co» de (co)incineração entre parênteses, porque me pareceu que falar em co-incineração (com hífen), e dessa forma assumindo que se trata de algo substancialmente diferente do método da incineração dedicada ou da pirólise, era uma forma demasiadamente eufemística de nos referirmos a esse assunto. A utilização dos parênteses permitia subentender que a (co)incineração não é mais do que uma variante da incineração, essa sim perigosa. Já nessa altura a diferença que se tentava estabelecer entre processos tecnológicos muito semelhantes, e em rigor arrumáveis na mesma gaveta do paradigma tecnológico vigente, se me afigurava tão pequena que, a meu ver, só podia ser vista como irrelevante.
            Para mim, a diferença que faz realmente diferença é a que existe entre queimar lixo, seja ele classificado como tóxico ou não (e é necessário atentar nas definições para isto!), e reciclá-lo ou realmente prevenir o seu surgimento. Para isso, é preciso que a sociedade se compenetre de que só a diferença que realmente faz toda a diferença é que importa, e não a primeira que referi, que é de todo irrisória e só serve para escamotear um problema já de si gravíssimo.
            Porque não basta ouvir a voz dos especialistas em incineração a este respeito: eu venho da área das Letras, e por isso considero que tenho um privilégio relevante nesta questão. Se tenho dúvidas, consigo «meter a língua a caminho», e tento esclarecer-me, porque quem tem boca e sabe escrever vai a Roma ou a Berlim, apenas voando com as palavras da nossa ou das línguas dos outros. Uma vantagem que muitos tecnocratas de vistas curtas não possuem.
            Foi porque pude comparar os usos dados em Portugal a certas palavras com os que noutras línguas se verificam que me apercebi de que é a verdadeira diferença, a tal que faz toda a diferença, que mais conta nesta contenda, e não as diferenças que apenas dividem um mesmo assunto em dois muito parecidos para melhor se conseguir reinar sobre uma população cuidadosamente mantida incauta e desinformada, sob uma capa de complexidade discursiva acrescida.
            Falei em meter a língua ao caminho: por vezes, é o que se pode fazer, quando as viagens são caras ou não há quem as queira fazer ou financiar. Nos próximos dias (8 e 9 de Outubro de 2011) vai haver de novo um encontro na Alemanha, semelhante a outros em que já estive, na cidade de Gelsenkirchen, organizado pelo movimento de cidadãos em prol da crio-reciclagem e da protecção do clima, no qual se vai, mais uma vez - e contra os lobbies instalados - promover alternativas à queima de resíduos, designadamente a prevenção e a reciclagem.
            O desafio a encetar actualmente implica que consigamos entender-nos, não apenas à escala regional e nacional, mas também à escala global sobre esta matéria, lutando contra a incineração em todas as suas modalidades. É ela que, de forma insane e impunemente, tem vindo a impedir à nascença o surgimento duma economia assente nas verdadeiras alternativas e na criação de emprego. Tentarei contactar de novo os organizadores do evento referido, entre outros, e saber como estão as coisas entretanto pela Europa.
            Tendo-vos confrontado com a minha opinião, e estando eu aqui na qualidade de Presidente do Núcleo de Coimbra da Quercus, permitam-me que vos diga o que consegui apurar junto do grupo de trabalho sobre resíduos desta associação ambientalista.
            Atualmente, a (co)incineração trata apenas 3% dos resíduos industriais perigosos. Segundo os dados mais recentes do Ministério do Ambiente, em 2009 81% dos resíduos industriais perigosos (perfazendo um total estimado de 300 000 toneladas) foram enviados para os CIRVER, instalações de tratamento longamente reivindicadas pela Quercus como alternativa à (co)incineração desses materiais. Para (co)incineração ia apenas, como se disse, um total de 3% dos resíduos perigosos. Outros destinos perfazem atualmente 16% do volume total. Fica assim demonstrado que a (co)incineração teria, como a Quercus sempre disse, muito pouca importância no tratamento dos Resíduos Industriais Perigosos, desde que fosse dada a mesma oportunidade a outras soluções alternativas (como é o caso dos CIRVER, da regeneração de óleos, da regeneração de solventes, etc.).
            Acresce que a crise económica que vem afectando o sector da construção civil, e que se reflecte na quantidade de cimento produzido, tem também levado a uma diminuição, ao que parece, do recurso a estes processos. E ainda bem, porque mau seria se só existisse este sector económico na sociedade portuguesa! Porém, também é um facto que as cimenteiras, em clara contradição com a política anteriormente por elas defendida e apregoada, querem agora (co)incinerar resíduos não perigosos recicláveis: em 2009 fizeram-no a cerca de 290 000 toneladas desses mesmos resíduos não perigosos, muitos dos quais são recicláveis, tal como o plástico, papel e cartão ou borrachas. É pois de extrema importância que deixe de ser permitida a (co)incineração de resíduos recicláveis em cimenteiras!
            E é então sobre isto que mais uma vez ergo a voz, neste «depois-mento» também acompanhado de algum optimismo e confiança no futuro: precisamos de ciência que nos ajude a prevenir resíduos e que nos obrigue a reciclá-los! E por isso não é aceitável que a atenção do governo se dirija toda para a monitorização dos professores e das universidades, avaliando-os para muitas vezes os colocar no desemprego, em vez de ser colocada onde deve estar: na monitorização e fiscalização ambiental, verdadeiramente independente, das cimenteiras e de outras infraestruturas poluentes. Como professora universitária, sinto que é errado falar apenas do que muito bem me apetece, e por isso estou aqui, mesmo que seja para falar de algo desagradável.
            O controle das emissões atmosféricas da co-incineração não só é deficiente como também, em larga medida, impossível, dada a variedade de materiais actualmente em circulação. Atualmente ele é feito essencialmente pela própria cimenteira, uma vez que o Ministério do Ambiente não tem meios para levar a cabo uma verificação independente. Uma tal situação deixa-nos muitas dúvidas sobre a poluição atmosférica que efectivamente é emitida pelas cimenteiras quando (co)incineram resíduos industriais perigosos.
            Aceitar sem qualquer questionamento um tal estado de coisas é cegueira, pelo que urge - pelo menos -  lamentar publicamente a situação atual, se não quisermos mais tarde mentir a nós mesmos para sobreviver no curto prazo, enganando as gerações mais jovens.
            Um outro mundo, bem melhor, tem de ser possível!

Esta é a sétima frase das sete que tinha de escrever.
Esta é a sexta frase das sete que tenho de escrever.
Esta é a quinta frase das sete que tenho de escrever.

Esta é a quarta frase das sete que tenho de escrever.
Esta é a terceira frase das sete que tenho de escrever.
Esta é a segunda frase das sete que tenho de escrever.
Esta é a primeira frase das sete que tenho de escrever.