2012/11/05

A cidade engorda e o estado emagrece: da IKEA e dos sobreiros




Adelaide Chichorro Ferreira 
Presidente do núcleo de Coimbra da Quercus


As empresas crescem sem olharem para trás ou recuarem em algumas coisas, por isso precisamos de leis que premeiem quem se proponha requalificar. Vem isto a propósito de um novo empreendimento empresarial que se prevê para Coimbra, levando à urbanização duma vasta zona verde no planalto de Santa Clara. Se a pura racionalidade económica manda que se aproveitem as infraestruturas rodoviárias e de estacionamento aí existentes, trazidas por outra grande superfície, dá-se não obstante a perda de um importante conjunto arbóreo que tinha sido inventariado pela Universidade de Coimbra e que foi depois ilegalmente eliminado, o que com a actual lei (da qual em parte discordo) faz com que não se possa construir ali por um período de 25 anos.
É apesar de tudo muito mais fácil expandir para locais novos do que recuperar o que já existe, mesmo que se tenha de construir de novo (refiro-me com isto a solo que já antes era urbano). A autorização para construir de raiz num local urbanisticamente virgem deveria portanto estar muito mais associada à responsabilidade por recuperar o que noutro local já urbanizado se encontra degradado. Muito desse solo urbano fica expectante até o proprietário, por exemplo de uma fábrica decrépita como muitas das que encontramos nas imediações de Coimbra, poder obter lucro máximo com um loteamento para habitação. Ao expandir para um lugar ainda urbanisticamente virgem desperdiçam-se noutros locais infraestruturas já existentes, tais como estradas, passeios, esgotos ou postes de iluminação pública, que perdem uso ou são usadas deficientemente por a zona ficar desleixada e/ou despovoada, assim como também não se contabilizam as perdas daí resultantes em segurança e em qualidade de vida para os residentes nas imediações desses locais.
É um facto: se uma empresa fareja lucro em algum lugar, é natural que se ponha simplesmente a «engordar», por isso pode parecer utópico pedir-lhe o obséquio de ter em conta as questões que acabo de referir. Fala-se também muito em eliminar «gorduras» do estado, mas dir-se-ia que no caso das empresas o argumento dessas mesmas gorduras praticamente não se ouve. Se é muito provável que, nas atuais circunstâncias, sem crescimento empresarial não possa haver emprego, não deixa de ser relevante distinguir, num planeta de recursos finitos, entre crescimento útil ou proveitoso para todos, equilibrado e portanto sustentável, e um outro que além de desnecessário possa contribuir para manter «intacto», não o património natural, como deveria acontecer, mas antes o património urbano decrépito que nos desfeia a cidade.  
O estado português, através do conhecimento que existe nas universidades, balizado por valores éticos e por uma racionalidade incompatível com jeitinhos ocasionais, poderia ajudar-nos a escolher entre empresas úteis e outras que não passam de gordura prejudicial. Através da educação e do conhecimento, o estado poderia ajudar-nos também a distinguir entre produções úteis e nocivas, tanto para a vida das pessoas como para tudo o mais de que as pessoas dependem - os ecossistemas, a água, o solo, a paisagem. Se ao estado fosse neste momento dada a possibilidade de cumprir com dignidade a sua missão, ele ajudar-nos-ia até mesmo a escolher entre o lixo útil (aquele que for compostável) e o lixo inútil (que, ao ser queimado, dá cabo da saúde das pessoas e dos ecossistemas vizinhos de instalações de incineração). Neste campo a frugalidade é mesmo a melhor política: devíamos ser muito mais «esquisitos» e escolher a nível local somente os produtos e as empresas que nos dão o melhor lixo. Ou seja, que ou não dão nenhum lixo ou dão um «lixo» integralmente capaz de recircular na economia local, sem danos para a saúde - e o melhor de todos é o húmus. Esse é-nos fornecido pela natureza, e por isso não devemos destruí-la. 
Ora, que tipo de política terá uma qualquer empresa que se vier a instalar em Coimbra, nesse local ou noutro qualquer? Estará ela a contribuir para a perpetuar ou intensificar a degradação de outra zona na região? Uma decisão equilibrada tem em conta todas estas questões, e o estado, por via das instituições competentes, ajudar-nos-ia muito nesta contabilização, caso não estivéssemos como estamos: cada vez mais dependentes do estrangeiro, cada vez mais tornados em serviçais dos ricos, que se apresentam como muito ambientalistas, mas inúmeras vezes só na medida em que lhes compremos os produtos deles, desaprendendo de os produzirmos nós próprios e exportando a nossa massa cinzenta por falta de dinheiro e de condições para ela se desenvolver por cá.
Ora, um investimento estrangeiro que se pretenda verdadeiramente ético não pode simplesmente aproveitar-se da penúria alheia para lucrar ainda mais. Num momento de tanta dificuldade económica, em que acaba de ser aprovado um orçamento draconiano em Portugal, as condições para se exercer a vigilância administrativa adequada e a ponderação mais correta podem não estar cabalmente garantidas, razão pela qual resolvi redigir o presente argumentário.
Não é novidade nenhuma para quem quiser fazer negócio em Portugal que os portugueses estão «gordos», e isto porque não têm nem tempo nem dinheiro para andarem nos ginásios, porque não lhes sobra um tostão ou hora livre para comprarem e lerem livros ou pagarem propinas universitárias, quanto mais para investirem criando eles próprios empresas, etc.! E já quase não têm capacidade financeira para irem ao médico, além de comerem demasiada farinha e carne de porco, que são dos itens gastronómicos mais baratos entre nós. Cortando a eito nas supostas «gorduras» do país, a troika e este governo criaram uma classe média que pouco de diretamente aplicável produz (além de muitas palavras, decerto), mas que o faz cada vez mais servilmente, consumindo depois com os seus magros salários quase só o que vem de fora. Os filhos desta (indi)gente em que nos tornámos, após obterem os canudos, apenas querem emigrar. Pode portanto este investimento da IKEA ajudar a resolver este problema? Claro, se contribuir para criar emprego e assim estimular a economia local - mas não poderíamos nós criá-lo também, se temos recursos florestais e talvez também algum know how? O verdadeiro desenvolvimento passaria em parte por aí.
Agora já não vêm de fora somente os produtos mas também os respetivos circuitos de comercialização. Atrás das autoestradas só era aliás de esperar que viesse o resto, numa espiral expansionista bem conhecida, porém agora com uma motivação adicional. É que, depois de o norte da Europa nos aliciar anos a fio para o consumo, supostamente o que quer agora é salvar-nos, pasme-se! Será assim tanto para nosso bem que a troika nos pretende pelintras, ou é antes para impedir que entre nós se gere concorrência aos produtos que o centro da Europa nos vende?
É pois relevante perguntar, particularmente no momento que ora vivemos: todas essas «gorduras» de betão que em breve irão crescer para cima de sobreiros e de potenciais campos de cultivo no planalto de Santa Clara não contam para a contabilização da troika (governo português incluído)? A ganância dos que lá de fora nos fidelizaram ao consumo dos seus produtos não é relevante? Só a suposta ganância dos portugueses deve ser penalizada?
As «gorduras» que por cá vemos a ser derretidas são os nossos filhos licenciados ou mesmo doutorados obrigados a emigrar, ao mesmo tempo que cada vez mais estrangeiros criam riqueza para si mesmos por cá, até exportando os nossos recursos. Poderão dizer-me as maiores maravilhas da globalização, mas como mãe o que vejo é isto: um país a mudar de rosto, de cultura, de gentes, e qualquer dia até de lugar. É mau mudar tanto? Não, se for para melhor, por essa mudança gerar emprego e qualidade de vida, e há também muitos bons exemplos disso mesmo. É mau mudar menos depressa e com mais cautela? Seguramente que também não, se essa mudança mais lenta ajudar a preservar os ecossistemas.
Seja por eufemismo, seja por cortesia, diz-se entre nós de quem é gordo que é «forte». A mim, que também transporto uns quilos a mais, resta-me a esperança nas virtualidades da língua portuguesa: pois é mesmo fortes que temos de ser doravante, qualquer que seja o nosso índice de massa corporal. E nem tudo é negativo nessa «força»: os gordos também costumam ser bonacheirões, pessoas simpáticas... Pois demonstremos essa nossa força e simpatia dizendo à senhora Merkel que por causa da nossa gordura já não conseguimos fazer tudo o que ela manda. Além de estarmos cansados, para certas coisas sabemos entretanto que mais vale estarmos quietos, pois assim sempre preservamos o nosso território e paisagem - afinal de contas, o nosso mais valioso, diverso, bonito e por isso tão cobiçado património. O norte da Europa, com as suas ideias ambientalistas, ensinou-nos a deixar esse mesmo território em paz, não foi?
As ordens agora são pelos vistos bem diferentes! Digamos portanto à IKEA que estude devidamente o problema do planalto de Santa Clara, e que não aumente o seu teor de lípidos para cima do que resta dos sobreiros. Em nome da própria frugalidade e amor à natureza que tanto apregoam os povos do norte da Europa, sugerimos à IKEA que escolha antes para se implantar um desses vários sítios com fábricas abandonadas a necessitarem urgentemente de requalificação, na zona de Coimbra. Poderá achar-se que são necessários mais e melhores acessos, e que eles só no Planalto de Santa Clara estão disponíveis. Mas então que se esclareça devidamente os cidadãos de Coimbra relativamente às razões da opção tomada e possíveis contrapartidas.
A ser absolutamente imprescindível que se verifique a engorda da cidade de Coimbra, neste caso concreto como noutros, então que isso se faça após um debate esclarecedor. Ou então sejamos claros: se no nosso país permitimos a «engorda» territorial às empresas estrangeiras, numa altura em que se retiram todas as reservas de liquidez aos cidadãos portugueses, não invoquemos depois a torto e a direito o argumento da necessidade de emagrecer o estado, como se fosse esse o único desígnio relevante a ter neste momento em conta, e como se não fosse imprescindível que o estado exerça a sua função de supervisão, vigilância e até mesmo de educação dos próprios agentes económicos no terreno. Retirar gorduras de forma saudável e digna nas cidades  é eliminar focos de degradação paisagística e de vandalismo já existentes, em vez de criar indefinidamente novos problemas desse tipo aos europeus que também somos, se calhar nem sequer mais obesos (em sentido amplo) do que outros povos por essa Europa fora, incluindo no norte rico.