2012/11/05

A cidade engorda e o estado emagrece: da IKEA e dos sobreiros




Adelaide Chichorro Ferreira 
Presidente do núcleo de Coimbra da Quercus


As empresas crescem sem olharem para trás ou recuarem em algumas coisas, por isso precisamos de leis que premeiem quem se proponha requalificar. Vem isto a propósito de um novo empreendimento empresarial que se prevê para Coimbra, levando à urbanização duma vasta zona verde no planalto de Santa Clara. Se a pura racionalidade económica manda que se aproveitem as infraestruturas rodoviárias e de estacionamento aí existentes, trazidas por outra grande superfície, dá-se não obstante a perda de um importante conjunto arbóreo que tinha sido inventariado pela Universidade de Coimbra e que foi depois ilegalmente eliminado, o que com a actual lei (da qual em parte discordo) faz com que não se possa construir ali por um período de 25 anos.
É apesar de tudo muito mais fácil expandir para locais novos do que recuperar o que já existe, mesmo que se tenha de construir de novo (refiro-me com isto a solo que já antes era urbano). A autorização para construir de raiz num local urbanisticamente virgem deveria portanto estar muito mais associada à responsabilidade por recuperar o que noutro local já urbanizado se encontra degradado. Muito desse solo urbano fica expectante até o proprietário, por exemplo de uma fábrica decrépita como muitas das que encontramos nas imediações de Coimbra, poder obter lucro máximo com um loteamento para habitação. Ao expandir para um lugar ainda urbanisticamente virgem desperdiçam-se noutros locais infraestruturas já existentes, tais como estradas, passeios, esgotos ou postes de iluminação pública, que perdem uso ou são usadas deficientemente por a zona ficar desleixada e/ou despovoada, assim como também não se contabilizam as perdas daí resultantes em segurança e em qualidade de vida para os residentes nas imediações desses locais.
É um facto: se uma empresa fareja lucro em algum lugar, é natural que se ponha simplesmente a «engordar», por isso pode parecer utópico pedir-lhe o obséquio de ter em conta as questões que acabo de referir. Fala-se também muito em eliminar «gorduras» do estado, mas dir-se-ia que no caso das empresas o argumento dessas mesmas gorduras praticamente não se ouve. Se é muito provável que, nas atuais circunstâncias, sem crescimento empresarial não possa haver emprego, não deixa de ser relevante distinguir, num planeta de recursos finitos, entre crescimento útil ou proveitoso para todos, equilibrado e portanto sustentável, e um outro que além de desnecessário possa contribuir para manter «intacto», não o património natural, como deveria acontecer, mas antes o património urbano decrépito que nos desfeia a cidade.  
O estado português, através do conhecimento que existe nas universidades, balizado por valores éticos e por uma racionalidade incompatível com jeitinhos ocasionais, poderia ajudar-nos a escolher entre empresas úteis e outras que não passam de gordura prejudicial. Através da educação e do conhecimento, o estado poderia ajudar-nos também a distinguir entre produções úteis e nocivas, tanto para a vida das pessoas como para tudo o mais de que as pessoas dependem - os ecossistemas, a água, o solo, a paisagem. Se ao estado fosse neste momento dada a possibilidade de cumprir com dignidade a sua missão, ele ajudar-nos-ia até mesmo a escolher entre o lixo útil (aquele que for compostável) e o lixo inútil (que, ao ser queimado, dá cabo da saúde das pessoas e dos ecossistemas vizinhos de instalações de incineração). Neste campo a frugalidade é mesmo a melhor política: devíamos ser muito mais «esquisitos» e escolher a nível local somente os produtos e as empresas que nos dão o melhor lixo. Ou seja, que ou não dão nenhum lixo ou dão um «lixo» integralmente capaz de recircular na economia local, sem danos para a saúde - e o melhor de todos é o húmus. Esse é-nos fornecido pela natureza, e por isso não devemos destruí-la. 
Ora, que tipo de política terá uma qualquer empresa que se vier a instalar em Coimbra, nesse local ou noutro qualquer? Estará ela a contribuir para a perpetuar ou intensificar a degradação de outra zona na região? Uma decisão equilibrada tem em conta todas estas questões, e o estado, por via das instituições competentes, ajudar-nos-ia muito nesta contabilização, caso não estivéssemos como estamos: cada vez mais dependentes do estrangeiro, cada vez mais tornados em serviçais dos ricos, que se apresentam como muito ambientalistas, mas inúmeras vezes só na medida em que lhes compremos os produtos deles, desaprendendo de os produzirmos nós próprios e exportando a nossa massa cinzenta por falta de dinheiro e de condições para ela se desenvolver por cá.
Ora, um investimento estrangeiro que se pretenda verdadeiramente ético não pode simplesmente aproveitar-se da penúria alheia para lucrar ainda mais. Num momento de tanta dificuldade económica, em que acaba de ser aprovado um orçamento draconiano em Portugal, as condições para se exercer a vigilância administrativa adequada e a ponderação mais correta podem não estar cabalmente garantidas, razão pela qual resolvi redigir o presente argumentário.
Não é novidade nenhuma para quem quiser fazer negócio em Portugal que os portugueses estão «gordos», e isto porque não têm nem tempo nem dinheiro para andarem nos ginásios, porque não lhes sobra um tostão ou hora livre para comprarem e lerem livros ou pagarem propinas universitárias, quanto mais para investirem criando eles próprios empresas, etc.! E já quase não têm capacidade financeira para irem ao médico, além de comerem demasiada farinha e carne de porco, que são dos itens gastronómicos mais baratos entre nós. Cortando a eito nas supostas «gorduras» do país, a troika e este governo criaram uma classe média que pouco de diretamente aplicável produz (além de muitas palavras, decerto), mas que o faz cada vez mais servilmente, consumindo depois com os seus magros salários quase só o que vem de fora. Os filhos desta (indi)gente em que nos tornámos, após obterem os canudos, apenas querem emigrar. Pode portanto este investimento da IKEA ajudar a resolver este problema? Claro, se contribuir para criar emprego e assim estimular a economia local - mas não poderíamos nós criá-lo também, se temos recursos florestais e talvez também algum know how? O verdadeiro desenvolvimento passaria em parte por aí.
Agora já não vêm de fora somente os produtos mas também os respetivos circuitos de comercialização. Atrás das autoestradas só era aliás de esperar que viesse o resto, numa espiral expansionista bem conhecida, porém agora com uma motivação adicional. É que, depois de o norte da Europa nos aliciar anos a fio para o consumo, supostamente o que quer agora é salvar-nos, pasme-se! Será assim tanto para nosso bem que a troika nos pretende pelintras, ou é antes para impedir que entre nós se gere concorrência aos produtos que o centro da Europa nos vende?
É pois relevante perguntar, particularmente no momento que ora vivemos: todas essas «gorduras» de betão que em breve irão crescer para cima de sobreiros e de potenciais campos de cultivo no planalto de Santa Clara não contam para a contabilização da troika (governo português incluído)? A ganância dos que lá de fora nos fidelizaram ao consumo dos seus produtos não é relevante? Só a suposta ganância dos portugueses deve ser penalizada?
As «gorduras» que por cá vemos a ser derretidas são os nossos filhos licenciados ou mesmo doutorados obrigados a emigrar, ao mesmo tempo que cada vez mais estrangeiros criam riqueza para si mesmos por cá, até exportando os nossos recursos. Poderão dizer-me as maiores maravilhas da globalização, mas como mãe o que vejo é isto: um país a mudar de rosto, de cultura, de gentes, e qualquer dia até de lugar. É mau mudar tanto? Não, se for para melhor, por essa mudança gerar emprego e qualidade de vida, e há também muitos bons exemplos disso mesmo. É mau mudar menos depressa e com mais cautela? Seguramente que também não, se essa mudança mais lenta ajudar a preservar os ecossistemas.
Seja por eufemismo, seja por cortesia, diz-se entre nós de quem é gordo que é «forte». A mim, que também transporto uns quilos a mais, resta-me a esperança nas virtualidades da língua portuguesa: pois é mesmo fortes que temos de ser doravante, qualquer que seja o nosso índice de massa corporal. E nem tudo é negativo nessa «força»: os gordos também costumam ser bonacheirões, pessoas simpáticas... Pois demonstremos essa nossa força e simpatia dizendo à senhora Merkel que por causa da nossa gordura já não conseguimos fazer tudo o que ela manda. Além de estarmos cansados, para certas coisas sabemos entretanto que mais vale estarmos quietos, pois assim sempre preservamos o nosso território e paisagem - afinal de contas, o nosso mais valioso, diverso, bonito e por isso tão cobiçado património. O norte da Europa, com as suas ideias ambientalistas, ensinou-nos a deixar esse mesmo território em paz, não foi?
As ordens agora são pelos vistos bem diferentes! Digamos portanto à IKEA que estude devidamente o problema do planalto de Santa Clara, e que não aumente o seu teor de lípidos para cima do que resta dos sobreiros. Em nome da própria frugalidade e amor à natureza que tanto apregoam os povos do norte da Europa, sugerimos à IKEA que escolha antes para se implantar um desses vários sítios com fábricas abandonadas a necessitarem urgentemente de requalificação, na zona de Coimbra. Poderá achar-se que são necessários mais e melhores acessos, e que eles só no Planalto de Santa Clara estão disponíveis. Mas então que se esclareça devidamente os cidadãos de Coimbra relativamente às razões da opção tomada e possíveis contrapartidas.
A ser absolutamente imprescindível que se verifique a engorda da cidade de Coimbra, neste caso concreto como noutros, então que isso se faça após um debate esclarecedor. Ou então sejamos claros: se no nosso país permitimos a «engorda» territorial às empresas estrangeiras, numa altura em que se retiram todas as reservas de liquidez aos cidadãos portugueses, não invoquemos depois a torto e a direito o argumento da necessidade de emagrecer o estado, como se fosse esse o único desígnio relevante a ter neste momento em conta, e como se não fosse imprescindível que o estado exerça a sua função de supervisão, vigilância e até mesmo de educação dos próprios agentes económicos no terreno. Retirar gorduras de forma saudável e digna nas cidades  é eliminar focos de degradação paisagística e de vandalismo já existentes, em vez de criar indefinidamente novos problemas desse tipo aos europeus que também somos, se calhar nem sequer mais obesos (em sentido amplo) do que outros povos por essa Europa fora, incluindo no norte rico.

2012/01/23

 

Um «protexto» pela mobilidade:
proposta de melhoria na gestão do estacionamento
na Universidade de Coimbra

Adelaide Chichorro Ferreira

Presidente do Núcleo de Coimbra da Quercus
– Associação Nacional de Conservação da Natureza


                                Coimbra, 16.5.2011


Magnífico Reitor da Universidade de Coimbra,


Gostaria que se dignasse dar a melhor atenção ao assunto descrito no presente texto, que resulta de, enquanto professora universitária e simultaneamente na qualidade de Presidente do núcleo de Coimbra da Quercus, constatar que um ambiente de constantes protestos se torna por vezes impeditivo de que se exerçam direitos e deveres cívicos e de que se faça o que é urgente fazer à pequena escala dos detalhes relevantes (que não é, sabemo-lo bem, a dos meros chavões propagandísticos).
Felizmente a democracia é fértil em modalidades de participação alternativas ao protesto, pelo que este não deve ser lido como um texto contra, mas antes em prol da resolução de problemas como o da mobilidade na zona da Universidade. Trata-se de um «protexto», digamos assim, uma vez que configura uma proposta a ser melhorada por quem para isso detém as competências mais adequadas. E o problema que constato, tanto por experiência própria como pela leitura da imprensa e através de conversas informais com outros colegas de núcleo, é o seguinte:
Muitos estudantes queixam-se de lhes faltar o dinheiro das bolsas, reivindicando aquilo que se torna cada vez mais improvável, o fim das propinas. Ora, atualmente são também muitos os estudantes que se deslocam de automóvel para a universidade, mesmo existindo o luxo subaproveitado de muitos autocarros circulando quase vazios na zona, facto que coloca depois a empresa que os gere em maus lençóis para manter adequadamente carreiras em zonas menos centrais, onde os autocarros são velhos e avariam com muito mais frequência.
Há, de resto, muitos lugares de estacionamento em diversas zonas dos pólos universitários, sendo que, concretamente no Pólo 1, que de todos é o que se encontra mais congestionado,
a) em alguns parques, todos eles pagos, os lugares disponíveis destinam-se exclusivamente a funcionários;
b) no restante e amplo espaço circundante desses mesmos parques, destinam-se ao público em geral, sendo frequentemente ocupados por turistas ou por funcionários que trabalham na Baixa e não pela população universitária em si;
c) e finalmente um número restrito de lugares são pagos, especialmente ao longo da rua Padre António Vieira ou da Avenida Sá da Bandeira.
Ora, em tempo de severa crise económica, não deixa de ser criticável que, para muitas pessoas que não têm quotidianamente outra hipótese senão deslocar-se de carro (pessoas com filhos pequenos ou com a necessidade de transportar objetos volumosos como livros, computadores ou compras), o estacionamento nos sítios descritos em c) seja tão dispendioso: ao que apurámos, cerca de 1 euro por cada hora. Um aluno ou professor que tenha de permanecer 5 horas na Universidade por dia, usando esse estacionamento acaba por gastar entre 25 e 30 euros por semana, isto é, cerca de 100 euros ou mais por mês, fora os custos crescentes com a gasolina e com a manutenção do automóvel. Portanto, ou é rico ou ficará com muito menos dinheiro para se alimentar e adquirir os seus materiais de trabalho e de estudo. 
O problema torna-se mais gritante se constatarmos que o estacionamento é pago na rua Padre António Vieira e na Avenida Sá da Bandeira, mas inexplicável e discriminatoriamente já não o é ao longo dos Arcos do Jardim, na Praça D. Dinis, em frente à Sé Nova, entre a Faculdade de Medicina e a de Letras, junto ao Instituto Justiça e Paz, ao longo do edifício das Químicas, Físicas e Matemáticas, etc. Acresce que esses lugares não pagos costumam estar permanentemente tomados, desde as 8h da manhã até ao fim da tarde, uma vez que muitos optam por chegar cedo e deixar o carro estacionado todo o dia, a custo zero, nessas zonas.
Quem necessite de se deslocar à Universidade por períodos curtos (por exemplo, professores e estudantes estrangeiros, alunos de outras regiões do país, turistas), ou não consegue estacionar e desiste, ou leva mais alguém consigo que possa ficar à espera sem fazer nada, com o carro estacionado em segunda fila, ou então gasta muita gasolina andando às voltas na esperança vã de que um lugar fique vago.
Muitos já nem vêm às aulas e recorrem estritamente à comunicação via computador, ficando portanto privados do contacto direto com colegas, funcionários e mesmo com os livros e outros equipamentos das bibliotecas, salas de estudo e laboratórios, o que consideramos não ser nem produtivo nem ecológico.
Turistas que se encontrem de passagem por Coimbra e que queiram, durante períodos de uma ou duas horas, visitar algumas das preciosidades que se encontram na zona, ficam também muitas vezes impedidos de o fazer, não porque não pudessem pagar o estacionamento ou os ingressos em museus, mas simplesmente porque não têm lugar para deixar o carro. Tudo isto representa uma perda enorme de eficiência, de produtividade, de projeção regional e internacional e até de receitas, mas é uma das consequências perniciosas da nossa dependência do automóvel.
Por isso mesmo urgia redigir o presente texto, que, como se afirmou acima, contém também uma proposta construtiva. É que, ao mesmo tempo que isto sucede, com o perigo de insucesso e de abandono escolar que a situação descrita também implica, verifica-se nas ONGs e também noutras instituições, por certo, uma clamorosa falta de braços para ajudar numa miríade de tarefas que em muito poderiam contribuir para aumentar a qualidade do espaço urbano daquela e de outras zonas, tornando-o mais atrativo: sabemos que há áreas verdes que necessitam de ser cuidadas, que alguns muros deviam ser periodicamente pintados, que as bibliotecas deviam poder estar abertas até mais tarde, com a devida (mas cara) supervisão, que há que prevenir incêndios ou ajudar idosos e crianças, etc. Assim, a própria Quercus agradeceria se as instituições da sua zona de influência disponibilizassem uma bolsa de voluntários que connosco quisessem colaborar em pequenas tarefas, nem que fosse a troco da possibilidade de um mais cómodo estacionamento.
 Perante três assuntos que só aparentemente nada têm a ver uns com os outros (uma discrepância artificial e incompreensível de preços no estacionamento na zona da universidade; graves problemas financeiros da população universitária; a necessidade de mais gente em programas de voluntariado, que garantam o bom funcionamento das instituições), o que há a fazer é «misturá-los» no sentido de que os problemas mais prementes se resolvam.
A proposta que o núcleo da Quercus de Coimbra faz é a seguinte: posta de lado que está a ideia de se construir mais um parque de estacionamento (dificilmente o Estado o poderia neste momento fazer, e seria dinheiro mal gasto aplicá-lo por privados em tal empreendimento), importa que o estacionamento pago na zona da Alta universitária se distribua de forma mais ampla mas também de modo equitativo e justo, permitindo uma maior acessibilidade e rotatividade na utilização do espaço.
As instituições envolvidas (Câmara Municipal, Universidade de Coimbra, gestores dos monumentos aí localizados – Sé Nova e Sé Velha, Museu Machado de Castro, Museu da Ciência) deveriam procurar entender-se quanto a um preço adequado a pagar pelo estacionamento disponível, embaratecendo-o em alguns lugares e tornando-o pago em muitos outros. Deveriam também concordar em que se estendesse a colocação de parquímetros a toda a zona da Alta Universitária, ativáveis mediante um cartão semelhante aos cartões multibanco ou de fotocópias, que seria carregado com algum dinheiro e e além disso com um sistema de pontos correspondentes a horas de trabalho voluntário (análogo ao que existe em muitas lojas, a fim de suscitar abatimentos nos preços).
Ou seja: as instituições que necessitassem de voluntários para determinadas tarefas recorreriam a uma bolsa criada e gerida de forma centralizada e contabilizariam depois essas horas para carregar os cartões a usar nos parquímetros. Quem não se voluntariasse obviamente que também pagaria um preço justo pelo estacionamento, menos elevado, espera-se, do que nas poucas zonas onde ele atualmente é pago. Por cada hora de trabalho voluntário obter-se-ia uma redução clara no preço do estacionamento  e com o tempo talvez se pudesse estender o sistema de pontos obtidos em voluntariado ao financiamento de despesas com transportes ou com cantinas.
O alargamnento da área de parquímetros acabaria por compensar o abatimento de preços alcançável mediante os programas de voluntariado, e por isso esta proposta só será exequível se se olhar para aquele território de forma integrada. É claro que a introdução dum sistema deste tipo exige algum investimento inicial. Mas talvez se ganhasse muito na eficiência e atratividade das instituições por ele servidas, através duma melhor articulação do que já existe, com benefícios para todos.
Assim se arrecadaria, justamente aliás, algum dinheiro extra por parte das instituições públicas, caso os utentes insistam em utilizar o automóvel privado sem a contrapartida cívica que o seu usufruto deve implicar para toda a comunidade. E não haveria cidadãos de primeira e de segunda: mesmo quem tem dinheiro para ter um carro é solicitado a dar o seu melhor em prol da cidade que lhe fornece o espaço para estacionar, ainda que esse seu contributo se fique pelo pagamento do estacionamento e respetiva libertação do espaço para os demais utentes. Se outras instituições da cidade, com as quais a zona em causa necessita de poder comunicar de forma eficiente, se unissem na promoção de esquemas deste tipo, mas compatíveis entre si (a zona dos Hospitais da Universidade de Coimbra ou do Pólo II, por exemplo), muito melhor partido tiraríamos todos dos espaços e equipamentos que atualmente existem.
Perguntará porventura o sr. Reitor (que como sabemos tem sido um ambientalista empenhado), ou perguntarão outros estudiosos e simples interessados nestes assuntos: será este, afinal de contas, um mecanismo de promoção do uso do automóvel no centro da cidade, e portanto algo que se poderia considerar pouco ecológico?
Em vez de lugares pagos de estacionamento para automóveis, não se deveria antes disponibilizar zonas de estacionamento para bicicletas (uma vez que a crise já está a levar a que muitos abandonem de todo a perspetiva de andar de carro)?
Não se deveria abandonar de todo a utilização do automóvel nas zonas universitárias, devido à poluição, e optar muito mais pelos transportes públicos?
A utilização de cartões magnéticos para uma vasta gama de atividades do quotidiano é segura do ponto de vista da necessária e obviamente imprescindível privacidade dos cidadãos?
Não temos por agora respostas a estas questões. Cremos, no entanto, que esses são assuntos diferentes, se bem que não menos importantes, e não é nossa intenção com este texto contribuir para a resolução de tudo ao mesmo tempo. Só a análise cuidada dos resultados efetivos duma proposta algo minimalista como a que aqui fazemos poderia elucidar-nos quanto a esses outros aspetos do problema global.
Na verdade, a proposta, em si, não se encontra inserida na gaveta da «mobilidade urbana», como costuma fazer-se (que aliás incluiria ainda a questão do Metro, dos transportes públicos, do elevador ou eventuais elevadores da Alta, etc). As medidas aqui sugeridas visam resolver apenas uma parte do problema e inserem-se muito mais numa outra gaveta, de que bem menos se fala: a da eficiência comunicacional.
É sobretudo dela que necessitamos, cada vez mais, para se poder pagar o justo preço à sociedade que o recurso a veículos automóveis acarreta, preço esse que não se resume ao das emissões, matérias-primas, energia gasta e espaço de estacionamento, mas também ao do bloqueio contínuo, e não pago, que a atual falta de acessibilidade à Alta está porventura a causar a um melhor, mais eficiente, mais rico e diversificado usufruto da cidade, quer pelos que cá trabalham, quer pelos que cá se deslocam, vindos de fora.
É óbvio que por voluntariado se entende em primeira linha atividade não remunerada, em prol do bem comum. No entanto, verifica-se que nos tempos de crise que vivemos são raros os idealistas que se envolvem em tarefas dessa natureza sem daí extraírem algum benefício pessoal. E claro que que os benefícios a obter com programas de voluntariado são, em primeira linha, os da comunidade como um todo, mas tal objeção não deve implicar que cada um não possa ser mais eficazmente incentivado a colaborar.
A diferença no que aqui propomos é que os benefícios auferidos por tarefas de voluntariado não se traduziriam necessariamente em ganhos em dinheiro, mas antes «em géneros»: designadamente os que resultam da criação de condições de eficiência na articulação de esforços entre diferentes entidades para que o quotidiano normal de cada um se torne muito menos dispendioso, mas sem perda ou mesmo com significativos aumentos de qualidade e de conforto.
Estamos convictos de que a Universidade de Coimbra dará a melhor atenção a esta nossa proposta. Em nome da Quercus apresentamos-lhe, e a toda a sua equipa, os nossos melhores cumprimentos e votos de bom trabalho.



Adelaide Chichorro Ferreira
Presidente do núcleo de Coimbra da Quercus

2012/01/03


Penteando a acacia dealbata

Adelaide Chichorro Ferreira

2 de Janeiro de 2012

No primeiro dia de 2012 enfiei-me de manhã na floresta, até chegar a uma clareira onde, no meio dum prado, havia uma pedra. Ali me sentei durante metade do dia, esquecida das horas e das refeições, e a dada altura pus-me mesmo a comer meruge para melhor ruminar as ideias malignas que me invadiram a mente. Quando as temos, há de facto que as ruminar, em sentido literal. Ideias de revolta, desilusão, desânimo com este ano que passou, ideias mesmo de ruptura - e os prognósticos não são nada aliciantes, no que se refere ao próximo ano.
Ali passei muitas horas, parada e ao frio. Levava ainda os sapatos que comprei para usar com o traje académico, e que a crise me faz agora reciclar também no dia-a-dia, a fim de evitar comprar uns novos. Também é por atenção a este pormenor, e ao da precaridade das meias de senhora atacadas pelas silvas, que qualquer observador atento desta cena nada bucólica poderia depreender que a minha ida para aquele refúgio recôndito nada tivera a ver com um qualquer plano da minha parte. Não houve nem plano, nem estratégia: o que me ia na alma era mesmo a revolta mais sentida e espontânea que se pode imaginar. Quando não se pode gritar, e sobretudo quando as conveniências da vida nos dizem que chorar está fora de questão, vai-se para a floresta comer meruge, pronto.
Só muito ao longe se ouviam as vozes de algumas pessoas que se deslocavam em conjunto para tomar um normalíssimo café e alguns cães a ladrar. Também eu poderia ter ido ao café apaziguar a alma, e para os meus medos há muito quem me queira receitar um cão. Mas o que eu desejava era permanecer para sempre na paz, no sossego, no silêncio da floresta. Assim pensava eu naquele momento, pelo menos.
Os pássaros vieram no entanto por diversas vezes visitar-me, e um deles enfiou-se, bem ao meu lado e com grande estardalhaço, no meio dum monte de silvas que rodeava uma ancestral oliveira, cujas azeitonas apodreceram por não terem sido apanhadas. Deitei contas à vida: se este ano não há azeitonas, ao menos há pássaros. Sempre dá ela por ela, valha-nos isso! Feliz daquele ou daquela que ainda pode e sabe ir comer meruge para a floresta. Pensei isto entre lágrimas, ao frio.
Ainda mergulhada neste tão contraditório estado de alma, comecei lentamente a experimentar a seiva da regeneração celular invadindo-me o corpo. Digamos que fui beber 2012 àquele chão, que não é lavrado há mais de quinze anos e que por isso ostenta luminosas placas de musgo, no meio do qual despontavam, muito verdes, as tais folhinhas de meruge que eu ia resmoendo quase uma a uma, ao ritmo das ideias malignas que passavam nesse dia pela minha cabeça. E que um pássaro ou outro trucidava com a sua voz, ou até com o seu esvoaçar desajeitado no meio das silvas. Tal qual eu me sentia ali: em vez de livre, antes deslocada, ridiculamente presa num filme que não era o meu. De sapatinhos pretos de salto, todos molhados, em plena floresta.
Depois de muito meditar, ou lá o que fiz no meio das folhas caídas dos carvalhos e da luz do sol banhando a clareira, lancei-me a cortar paus secos de acácia até fazer um monte deles, que dentro em breve, espero, dará umas duas ou três fornadas de pão. «Assim eu me dedique a isso, o que não é certo!». Mas depressa afastei mais essa ideia maligna do meu cérebro. Maligna porque se tratava de mais uma bela intenção não concretizada, das muitas que sempre tive e tenho. Afastei-a como quem mete a mão na franja duma criança que já só olha o mundo por entre os cabelos: o futuro era o que fosse, que se lixe.
Naquele momento eu estava ali era para cortar paus. Com as minhas mãos nuas, sem luvas, sentindo os golpes e os arranhões, ouvindo os estalidos, atirando com violência os ramos partidos para onde quer que fosse. É aliás um bálsamo para o espírito sentir horas a fio que o frio na alma se combate também dessa forma aguerrida, e que a tal da seiva se transfere das ervas no solo e das próprias acácias para a minha cabeça, por obra e graça desta tão subtil tristeza de Ano Novo.
Comecei de facto por escortaçar as acácias à bruta, como quem arranca cabelos, tal era a fúria com o ano que passou. E nessas alturas não se planeia nada. Vai-se em frente e tudo acontece, desinteressada e imprudentemente. Pobres das acácias, que não têm culpa das políticas do governo, da corrupção, das maledicências torpes, da falta de inspiração para trabalhar em regime de isolamento forçado! Pobres acácias, bode expiatório tão à mão de destruir, mas por isso mesmo também tão benfazejo.
Era-me naquele momento indiferente saber que ao destrui-las abro lugar não só às acácias mais esbeltas como à flora nativa, especialmente aos bem mais simbólicos e rentáveis sobreiros. E estava-me nas tintas, a princípio, para que as acácias mais vetustas até se sentissem agradecidas com essa minha ação, pois que tamanha trunfa seca nem deixa entrar a luz que lhes desafoga o crescimento.
Dirigi muito pérfida e desrespeitosamente a minha fúria contra uma das mais crescidas, todavia já tombada para cima duma oliveira, e portanto fragilizada, quem sabe por se sentir impedindo outra árvore de crescer. Na altura eu não fazia a menor ideia de que o facto de a desembaraçar de algum do seu encarquilhamento na ramagem já seca era para ela, realmente, uma benesse. Também  limpei as árvores mais jovens que com ela competiam, mas como quem não quer verdadeiramente a coisa, isto é, apenas porque de motosserras nada percebo. Em vez de cortar o mal pela raiz, limitei-me sem complexos de culpa a seguir uma política de  pequenos passos, pensando que quando chegar a altura de cortar a eito troncos maiores, assim o farei. Quando for necessário. Se for necessário. Mas adiei mais uma vez pensar no futuro.
Que todavia não me saía da cabeça. Para quê cortar tudo duma vez, se eu no fundo quero é que as raízes das árvores maiores se embrenhem na terra e partam elas mesmas, sem me darem trabalho a mim, a terra pedregosa que lhes subjaz, para que lentamente se transforme em solo? Sonhos! Eu sei que neste «lentamente», segundo os livros, estariam dezenas, para não dizer centenas de anos, e que muito antes disso uma ventania as arrancará quando, por falta de alimento, elas acabarem por murchar. Por isso para quê preocupar-me? Já lhes conheço de ginjeira o ciclo de vida: mal atingem o tamanho dum sobreiro adulto, o que fazem em menos de metade do tempo, começam a queixar-se de falta de água, ou de sustentação, ou do que for. Deixam de mostrar o mesmo viço que nos primeiros anos, e então é que se torna necessário cortá-las. Procrastinei: lá se há-de chegar, mas para já o que posso realmente fazer é cuidar-lhes simplesmente das guedelhas em excesso.
Se as acácias afinal de contas servem para nos fazer ganhar arranhões nos dedos, mas exercitando músculos há muito parados, a utilidade do meruge alimentando-nos o espírito está em nos fazer ganhar inconscientemente vontade de facilitar ao solo, com a ramagem verde das acácias quase em flor sobre ele espalhadas, a nobre tarefa de para o ano, pontualmente, ali produzir deliciosos tortulhos. Dir-se-ia, portanto, que optei por um futuro incerto, o dos tão cobiçados tortulhos, lá para Outubro ou Novembro, em vez de deixar por omissão que se pintem de um decorativo amarelo, muito mais denso e solarengo, e já neste próximo Fevereiro, as pobres acácias tortuosas que por ali se aglomeravam. Escolhi o longo em vez do curto prazo, aventará quem me lê, elogiosamente, até. Mas qual quê! A verdade é que naquele momento não escolhi prazo nenhum, e aliás não optei realmente por nada. Simplesmente descobri uma coisa importante e inspiradora, e fi-lo como quem tira uma rifa: completamente ao calhas.
É que no meio desse fim do mundo mental em que me encontrava, o que sei mesmo e agora aqui solenemente registo é que aquela acácia maior olhou para mim e para a minha fúria, sim, mas surpreendentemente apenas me sorriu. E aliás nem se queixou que eu assim tão subitamente a começasse a atacar. Em vez disso contou-me muitas coisas da vida dela, agora tão tristemente tombada para cima da oliveira. Fomos conversando uma com a outra através de sinapses mentais, à medida que, depois de muitos ramos cortados, a luz do dia iluminava finalmente o verde que rodeava o tronco da oliveira, para logo desaparecer com o aproximar da noite.
Às tantas fui colocando meticulosamente todos os paus num montinho, ao contrário do que de início comecei por fazer, em que simplesmente os atirava ao acaso. A minha presença ali foi-se tornando cada vez mais cordata e compassiva, e então percebi que a minha ação representava para ela, a acácia caída, praticamente o mesmo que uma ida ao cabeleireiro para toda a mulher com ideias malignas.
Agora sei que, tal como as mulheres, também as acácias de certa idade se sentem rejeitadas e até indesejadas, e se calhar até é por isso que, simbolicamente, para ali as deixo tanto tempo tombadas. Aprendi no entanto neste dia que também é preciso ir de vez em quando consolá-las, passar algum tempo junto delas. Enquanto recolhia os paus, fui dizendo à tal acácia caída de tristeza (se calhar por não dar cortiça ou azeitonas, apenas flores amarelas que ninguém quer), que do seu corpo farei um muro para sustentar as terras levadas pela erosão, ou até um canteiro, pondo-lhe terra por cima. E em todo o caso há sempre a lareira para que nos dê calor. Lá lhe fui dizendo que há infernos piores, e que este ao menos o é apenas por uma boa causa, como o são tantas vezes os infernos das mulheres. Ao menos com a lareira não se consome electricidade… Fiz portanto com que se sentisse útil, e não somente uma reles infestante, ainda por cima trucidando vidas alheias, bem mais úteis à sociedade do que a sua.
Noutro mundo possível provavelmente teria sido eu a ir levar as minhas mágoas ao cabeleireiro. Em vez disso, fiquei neste início de ano a conhecer melhor esta minha faceta de cabeleireira-confidente de acácias moribundas. Passarei pois a adotar a expressão «Vai pentear acácias!» sempre que alguém com ideias malignas me importunar o espírito, incluindo eu própria.
Isto porque entendi finalmente por que razão esta espécie se chama acacia dealbata. Algo me diz que só pode chamar-se assim porque ela se situa, e me recolocou a mim após um momento de desânimo, no dealbar da esperança, a meio caminho entre a fúria incontrolada e o sonho estilhaçado que eu no fundo queria, mesmo assim, retomar.