Adelaide Chichorro Ferreira
Presidente do núcleo de Coimbra da Quercus
As empresas
crescem sem olharem para trás ou recuarem em algumas coisas, por isso
precisamos de leis que premeiem quem se proponha requalificar. Vem isto a
propósito de um novo empreendimento empresarial que se prevê para Coimbra,
levando à urbanização duma vasta zona verde no planalto de Santa Clara. Se a
pura racionalidade económica manda que se aproveitem as infraestruturas
rodoviárias e de estacionamento aí existentes, trazidas por outra grande
superfície, dá-se não obstante a perda de um importante conjunto arbóreo que
tinha sido inventariado pela Universidade de Coimbra e que foi depois
ilegalmente eliminado, o que com a actual lei (da qual em parte discordo) faz
com que não se possa construir ali por um período de 25 anos.
É apesar de
tudo muito mais fácil expandir para locais novos do que recuperar o que já existe,
mesmo que se tenha de construir de novo (refiro-me com isto a solo que já antes
era urbano). A autorização para construir de raiz num local urbanisticamente
virgem deveria portanto estar muito mais associada à responsabilidade por
recuperar o que noutro local já urbanizado se encontra degradado. Muito desse solo
urbano fica expectante até o proprietário, por exemplo de uma fábrica decrépita
como muitas das que encontramos nas imediações de Coimbra, poder obter lucro
máximo com um loteamento para habitação. Ao expandir para um lugar ainda
urbanisticamente virgem desperdiçam-se noutros locais infraestruturas já
existentes, tais como estradas, passeios, esgotos ou postes de iluminação
pública, que perdem uso ou são usadas deficientemente por a zona ficar
desleixada e/ou despovoada, assim como também não se contabilizam as perdas daí
resultantes em segurança e em qualidade de vida para os residentes nas
imediações desses locais.
É um facto: se
uma empresa fareja lucro em algum lugar, é natural que se ponha simplesmente a «engordar»,
por isso pode parecer utópico pedir-lhe o obséquio de ter em conta as questões que
acabo de referir. Fala-se também muito em eliminar «gorduras» do estado, mas
dir-se-ia que no caso das empresas o argumento dessas mesmas gorduras praticamente
não se ouve. Se é muito provável que, nas atuais circunstâncias, sem crescimento
empresarial não possa haver emprego, não deixa de ser relevante distinguir, num
planeta de recursos finitos, entre crescimento útil ou proveitoso para todos, equilibrado
e portanto sustentável, e um outro que além de desnecessário possa contribuir
para manter «intacto», não o património natural, como deveria acontecer, mas
antes o património urbano decrépito que nos desfeia a cidade.
O estado
português, através do conhecimento que existe nas universidades, balizado por
valores éticos e por uma racionalidade incompatível com jeitinhos ocasionais,
poderia ajudar-nos a escolher entre empresas úteis e outras que não passam de
gordura prejudicial. Através da educação e do conhecimento, o estado poderia ajudar-nos
também a distinguir entre produções úteis e nocivas, tanto para a vida das
pessoas como para tudo o mais de que as pessoas dependem - os ecossistemas, a
água, o solo, a paisagem. Se ao estado fosse neste momento dada a possibilidade
de cumprir com dignidade a sua missão, ele ajudar-nos-ia até mesmo a escolher
entre o lixo útil (aquele que for compostável) e o lixo inútil (que, ao ser
queimado, dá cabo da saúde das pessoas e dos ecossistemas vizinhos de
instalações de incineração). Neste campo a frugalidade é mesmo a melhor
política: devíamos ser muito mais «esquisitos» e escolher a nível local somente
os produtos e as empresas que nos dão o melhor lixo. Ou seja, que ou não dão
nenhum lixo ou dão um «lixo» integralmente capaz de recircular na economia
local, sem danos para a saúde - e o melhor de todos é o húmus. Esse é-nos fornecido
pela natureza, e por isso não devemos destruí-la.
Ora, que tipo
de política terá uma qualquer empresa que se vier a instalar em Coimbra, nesse
local ou noutro qualquer? Estará ela a contribuir para a perpetuar ou
intensificar a degradação de outra zona na região? Uma decisão equilibrada tem
em conta todas estas questões, e o estado, por via das instituições
competentes, ajudar-nos-ia muito nesta contabilização, caso não estivéssemos
como estamos: cada vez mais dependentes do estrangeiro, cada vez mais tornados
em serviçais dos ricos, que se apresentam como muito ambientalistas, mas
inúmeras vezes só na medida em que lhes compremos os produtos deles, desaprendendo
de os produzirmos nós próprios e exportando a nossa massa cinzenta por falta de
dinheiro e de condições para ela se desenvolver por cá.
Ora, um
investimento estrangeiro que se pretenda verdadeiramente ético não pode
simplesmente aproveitar-se da penúria alheia para lucrar ainda mais. Num
momento de tanta dificuldade económica, em que acaba de ser aprovado um
orçamento draconiano em Portugal, as condições para se exercer a vigilância
administrativa adequada e a ponderação mais correta podem não estar cabalmente
garantidas, razão pela qual resolvi redigir o presente argumentário.
Não é novidade
nenhuma para quem quiser fazer negócio em Portugal que os portugueses estão «gordos»,
e isto porque não têm nem tempo nem dinheiro para andarem nos ginásios, porque
não lhes sobra um tostão ou hora livre para comprarem e lerem livros ou pagarem
propinas universitárias, quanto mais para investirem criando eles próprios
empresas, etc.! E já quase não têm capacidade financeira para irem ao médico,
além de comerem demasiada farinha e carne de porco, que são dos itens
gastronómicos mais baratos entre nós. Cortando a eito nas supostas «gorduras»
do país, a troika e este governo criaram uma classe média que pouco de
diretamente aplicável produz (além de muitas palavras, decerto), mas que o faz
cada vez mais servilmente, consumindo depois com os seus magros salários quase
só o que vem de fora. Os filhos desta (indi)gente em que nos tornámos, após
obterem os canudos, apenas querem emigrar. Pode portanto este investimento da
IKEA ajudar a resolver este problema? Claro, se contribuir para criar emprego e
assim estimular a economia local - mas não poderíamos nós criá-lo também, se
temos recursos florestais e talvez também algum know how? O verdadeiro
desenvolvimento passaria em parte por aí.
Agora já não
vêm de fora somente os produtos mas também os respetivos circuitos de
comercialização. Atrás das autoestradas só era aliás de esperar que viesse o
resto, numa espiral expansionista bem conhecida, porém agora com uma motivação
adicional. É que, depois de o norte da Europa nos aliciar anos a fio para o
consumo, supostamente o que quer agora é salvar-nos, pasme-se! Será assim tanto
para nosso bem que a troika nos pretende pelintras, ou é antes para impedir que
entre nós se gere concorrência aos produtos que o centro da Europa nos vende?
É pois relevante
perguntar, particularmente no momento que ora vivemos: todas essas «gorduras» de
betão que em breve irão crescer para cima de sobreiros e de potenciais campos
de cultivo no planalto de Santa Clara não contam para a contabilização da
troika (governo português incluído)? A ganância dos que lá de fora nos
fidelizaram ao consumo dos seus produtos não é relevante? Só a suposta ganância
dos portugueses deve ser penalizada?
As «gorduras»
que por cá vemos a ser derretidas são os nossos filhos licenciados ou mesmo
doutorados obrigados a emigrar, ao mesmo tempo que cada vez mais estrangeiros
criam riqueza para si mesmos por cá, até exportando os nossos recursos. Poderão
dizer-me as maiores maravilhas da globalização, mas como mãe o que vejo é isto:
um país a mudar de rosto, de cultura, de gentes, e qualquer dia até de lugar. É
mau mudar tanto? Não, se for para melhor, por essa mudança gerar emprego e
qualidade de vida, e há também muitos bons exemplos disso mesmo. É mau mudar
menos depressa e com mais cautela? Seguramente que também não, se essa mudança
mais lenta ajudar a preservar os ecossistemas.
Seja por
eufemismo, seja por cortesia, diz-se entre nós de quem é gordo que é «forte». A
mim, que também transporto uns quilos a mais, resta-me a esperança nas
virtualidades da língua portuguesa: pois é mesmo fortes que temos de ser
doravante, qualquer que seja o nosso índice de massa corporal. E nem tudo é
negativo nessa «força»: os gordos também costumam ser bonacheirões, pessoas
simpáticas... Pois demonstremos essa nossa força e simpatia dizendo à senhora
Merkel que por causa da nossa gordura já não conseguimos fazer tudo o que ela
manda. Além de estarmos cansados, para certas coisas sabemos entretanto que
mais vale estarmos quietos, pois assim sempre preservamos o nosso território e
paisagem - afinal de contas, o nosso mais valioso, diverso, bonito e por isso
tão cobiçado património. O norte da Europa, com as suas ideias ambientalistas, ensinou-nos
a deixar esse mesmo território em paz, não foi?
As ordens
agora são pelos vistos bem diferentes! Digamos portanto à IKEA que estude
devidamente o problema do planalto de Santa Clara, e que não aumente o seu teor
de lípidos para cima do que resta dos sobreiros. Em nome da própria frugalidade
e amor à natureza que tanto apregoam os povos do norte da Europa, sugerimos à
IKEA que escolha antes para se implantar um desses vários sítios com fábricas
abandonadas a necessitarem urgentemente de requalificação, na zona de Coimbra. Poderá
achar-se que são necessários mais e melhores acessos, e que eles só no Planalto
de Santa Clara estão disponíveis. Mas então que se esclareça devidamente os
cidadãos de Coimbra relativamente às razões da opção tomada e possíveis
contrapartidas.
A ser
absolutamente imprescindível que se verifique a engorda da cidade de Coimbra,
neste caso concreto como noutros, então que isso se faça após um debate esclarecedor.
Ou então sejamos claros: se no nosso país permitimos a «engorda» territorial às
empresas estrangeiras, numa altura em que se retiram todas as reservas de
liquidez aos cidadãos portugueses, não invoquemos depois a torto e a direito o
argumento da necessidade de emagrecer o estado, como se fosse esse o único desígnio
relevante a ter neste momento em conta, e como se não fosse imprescindível que
o estado exerça a sua função de supervisão, vigilância e até mesmo de educação
dos próprios agentes económicos no terreno. Retirar gorduras de forma saudável
e digna nas cidades é eliminar focos de degradação paisagística e de
vandalismo já existentes, em vez de criar indefinidamente novos problemas desse
tipo aos europeus que também somos, se calhar nem sequer mais obesos (em
sentido amplo) do que outros povos por essa Europa fora, incluindo no norte
rico.