2012/01/03


Penteando a acacia dealbata

Adelaide Chichorro Ferreira

2 de Janeiro de 2012

No primeiro dia de 2012 enfiei-me de manhã na floresta, até chegar a uma clareira onde, no meio dum prado, havia uma pedra. Ali me sentei durante metade do dia, esquecida das horas e das refeições, e a dada altura pus-me mesmo a comer meruge para melhor ruminar as ideias malignas que me invadiram a mente. Quando as temos, há de facto que as ruminar, em sentido literal. Ideias de revolta, desilusão, desânimo com este ano que passou, ideias mesmo de ruptura - e os prognósticos não são nada aliciantes, no que se refere ao próximo ano.
Ali passei muitas horas, parada e ao frio. Levava ainda os sapatos que comprei para usar com o traje académico, e que a crise me faz agora reciclar também no dia-a-dia, a fim de evitar comprar uns novos. Também é por atenção a este pormenor, e ao da precaridade das meias de senhora atacadas pelas silvas, que qualquer observador atento desta cena nada bucólica poderia depreender que a minha ida para aquele refúgio recôndito nada tivera a ver com um qualquer plano da minha parte. Não houve nem plano, nem estratégia: o que me ia na alma era mesmo a revolta mais sentida e espontânea que se pode imaginar. Quando não se pode gritar, e sobretudo quando as conveniências da vida nos dizem que chorar está fora de questão, vai-se para a floresta comer meruge, pronto.
Só muito ao longe se ouviam as vozes de algumas pessoas que se deslocavam em conjunto para tomar um normalíssimo café e alguns cães a ladrar. Também eu poderia ter ido ao café apaziguar a alma, e para os meus medos há muito quem me queira receitar um cão. Mas o que eu desejava era permanecer para sempre na paz, no sossego, no silêncio da floresta. Assim pensava eu naquele momento, pelo menos.
Os pássaros vieram no entanto por diversas vezes visitar-me, e um deles enfiou-se, bem ao meu lado e com grande estardalhaço, no meio dum monte de silvas que rodeava uma ancestral oliveira, cujas azeitonas apodreceram por não terem sido apanhadas. Deitei contas à vida: se este ano não há azeitonas, ao menos há pássaros. Sempre dá ela por ela, valha-nos isso! Feliz daquele ou daquela que ainda pode e sabe ir comer meruge para a floresta. Pensei isto entre lágrimas, ao frio.
Ainda mergulhada neste tão contraditório estado de alma, comecei lentamente a experimentar a seiva da regeneração celular invadindo-me o corpo. Digamos que fui beber 2012 àquele chão, que não é lavrado há mais de quinze anos e que por isso ostenta luminosas placas de musgo, no meio do qual despontavam, muito verdes, as tais folhinhas de meruge que eu ia resmoendo quase uma a uma, ao ritmo das ideias malignas que passavam nesse dia pela minha cabeça. E que um pássaro ou outro trucidava com a sua voz, ou até com o seu esvoaçar desajeitado no meio das silvas. Tal qual eu me sentia ali: em vez de livre, antes deslocada, ridiculamente presa num filme que não era o meu. De sapatinhos pretos de salto, todos molhados, em plena floresta.
Depois de muito meditar, ou lá o que fiz no meio das folhas caídas dos carvalhos e da luz do sol banhando a clareira, lancei-me a cortar paus secos de acácia até fazer um monte deles, que dentro em breve, espero, dará umas duas ou três fornadas de pão. «Assim eu me dedique a isso, o que não é certo!». Mas depressa afastei mais essa ideia maligna do meu cérebro. Maligna porque se tratava de mais uma bela intenção não concretizada, das muitas que sempre tive e tenho. Afastei-a como quem mete a mão na franja duma criança que já só olha o mundo por entre os cabelos: o futuro era o que fosse, que se lixe.
Naquele momento eu estava ali era para cortar paus. Com as minhas mãos nuas, sem luvas, sentindo os golpes e os arranhões, ouvindo os estalidos, atirando com violência os ramos partidos para onde quer que fosse. É aliás um bálsamo para o espírito sentir horas a fio que o frio na alma se combate também dessa forma aguerrida, e que a tal da seiva se transfere das ervas no solo e das próprias acácias para a minha cabeça, por obra e graça desta tão subtil tristeza de Ano Novo.
Comecei de facto por escortaçar as acácias à bruta, como quem arranca cabelos, tal era a fúria com o ano que passou. E nessas alturas não se planeia nada. Vai-se em frente e tudo acontece, desinteressada e imprudentemente. Pobres das acácias, que não têm culpa das políticas do governo, da corrupção, das maledicências torpes, da falta de inspiração para trabalhar em regime de isolamento forçado! Pobres acácias, bode expiatório tão à mão de destruir, mas por isso mesmo também tão benfazejo.
Era-me naquele momento indiferente saber que ao destrui-las abro lugar não só às acácias mais esbeltas como à flora nativa, especialmente aos bem mais simbólicos e rentáveis sobreiros. E estava-me nas tintas, a princípio, para que as acácias mais vetustas até se sentissem agradecidas com essa minha ação, pois que tamanha trunfa seca nem deixa entrar a luz que lhes desafoga o crescimento.
Dirigi muito pérfida e desrespeitosamente a minha fúria contra uma das mais crescidas, todavia já tombada para cima duma oliveira, e portanto fragilizada, quem sabe por se sentir impedindo outra árvore de crescer. Na altura eu não fazia a menor ideia de que o facto de a desembaraçar de algum do seu encarquilhamento na ramagem já seca era para ela, realmente, uma benesse. Também  limpei as árvores mais jovens que com ela competiam, mas como quem não quer verdadeiramente a coisa, isto é, apenas porque de motosserras nada percebo. Em vez de cortar o mal pela raiz, limitei-me sem complexos de culpa a seguir uma política de  pequenos passos, pensando que quando chegar a altura de cortar a eito troncos maiores, assim o farei. Quando for necessário. Se for necessário. Mas adiei mais uma vez pensar no futuro.
Que todavia não me saía da cabeça. Para quê cortar tudo duma vez, se eu no fundo quero é que as raízes das árvores maiores se embrenhem na terra e partam elas mesmas, sem me darem trabalho a mim, a terra pedregosa que lhes subjaz, para que lentamente se transforme em solo? Sonhos! Eu sei que neste «lentamente», segundo os livros, estariam dezenas, para não dizer centenas de anos, e que muito antes disso uma ventania as arrancará quando, por falta de alimento, elas acabarem por murchar. Por isso para quê preocupar-me? Já lhes conheço de ginjeira o ciclo de vida: mal atingem o tamanho dum sobreiro adulto, o que fazem em menos de metade do tempo, começam a queixar-se de falta de água, ou de sustentação, ou do que for. Deixam de mostrar o mesmo viço que nos primeiros anos, e então é que se torna necessário cortá-las. Procrastinei: lá se há-de chegar, mas para já o que posso realmente fazer é cuidar-lhes simplesmente das guedelhas em excesso.
Se as acácias afinal de contas servem para nos fazer ganhar arranhões nos dedos, mas exercitando músculos há muito parados, a utilidade do meruge alimentando-nos o espírito está em nos fazer ganhar inconscientemente vontade de facilitar ao solo, com a ramagem verde das acácias quase em flor sobre ele espalhadas, a nobre tarefa de para o ano, pontualmente, ali produzir deliciosos tortulhos. Dir-se-ia, portanto, que optei por um futuro incerto, o dos tão cobiçados tortulhos, lá para Outubro ou Novembro, em vez de deixar por omissão que se pintem de um decorativo amarelo, muito mais denso e solarengo, e já neste próximo Fevereiro, as pobres acácias tortuosas que por ali se aglomeravam. Escolhi o longo em vez do curto prazo, aventará quem me lê, elogiosamente, até. Mas qual quê! A verdade é que naquele momento não escolhi prazo nenhum, e aliás não optei realmente por nada. Simplesmente descobri uma coisa importante e inspiradora, e fi-lo como quem tira uma rifa: completamente ao calhas.
É que no meio desse fim do mundo mental em que me encontrava, o que sei mesmo e agora aqui solenemente registo é que aquela acácia maior olhou para mim e para a minha fúria, sim, mas surpreendentemente apenas me sorriu. E aliás nem se queixou que eu assim tão subitamente a começasse a atacar. Em vez disso contou-me muitas coisas da vida dela, agora tão tristemente tombada para cima da oliveira. Fomos conversando uma com a outra através de sinapses mentais, à medida que, depois de muitos ramos cortados, a luz do dia iluminava finalmente o verde que rodeava o tronco da oliveira, para logo desaparecer com o aproximar da noite.
Às tantas fui colocando meticulosamente todos os paus num montinho, ao contrário do que de início comecei por fazer, em que simplesmente os atirava ao acaso. A minha presença ali foi-se tornando cada vez mais cordata e compassiva, e então percebi que a minha ação representava para ela, a acácia caída, praticamente o mesmo que uma ida ao cabeleireiro para toda a mulher com ideias malignas.
Agora sei que, tal como as mulheres, também as acácias de certa idade se sentem rejeitadas e até indesejadas, e se calhar até é por isso que, simbolicamente, para ali as deixo tanto tempo tombadas. Aprendi no entanto neste dia que também é preciso ir de vez em quando consolá-las, passar algum tempo junto delas. Enquanto recolhia os paus, fui dizendo à tal acácia caída de tristeza (se calhar por não dar cortiça ou azeitonas, apenas flores amarelas que ninguém quer), que do seu corpo farei um muro para sustentar as terras levadas pela erosão, ou até um canteiro, pondo-lhe terra por cima. E em todo o caso há sempre a lareira para que nos dê calor. Lá lhe fui dizendo que há infernos piores, e que este ao menos o é apenas por uma boa causa, como o são tantas vezes os infernos das mulheres. Ao menos com a lareira não se consome electricidade… Fiz portanto com que se sentisse útil, e não somente uma reles infestante, ainda por cima trucidando vidas alheias, bem mais úteis à sociedade do que a sua.
Noutro mundo possível provavelmente teria sido eu a ir levar as minhas mágoas ao cabeleireiro. Em vez disso, fiquei neste início de ano a conhecer melhor esta minha faceta de cabeleireira-confidente de acácias moribundas. Passarei pois a adotar a expressão «Vai pentear acácias!» sempre que alguém com ideias malignas me importunar o espírito, incluindo eu própria.
Isto porque entendi finalmente por que razão esta espécie se chama acacia dealbata. Algo me diz que só pode chamar-se assim porque ela se situa, e me recolocou a mim após um momento de desânimo, no dealbar da esperança, a meio caminho entre a fúria incontrolada e o sonho estilhaçado que eu no fundo queria, mesmo assim, retomar.

1 comentário:

Martim disse...

Um texto magnífico de palavras perenes como as folhas das acácias.*