2013/01/05

IC3: O disparate da «obra de arte»?

                                            
                                              Construção civil ou incivil?
Considerações a propósito do troço «final» do IC3

Adelaide Chichorro Ferreira,
presidente do núcleo de Coimbra da Quercus
(escrito a 29.8.2012 mas só agora aqui publicado)



1.        Esta auto-estrada (IC3) não é uma prioridade
2.        Argumentos contra a Tese A  
3.        Argumentos contra a Tese B  
4.        Restantes argumentos.
5.        Interrogações finais

1. Esta auto-estrada (IC3) não é uma prioridade

Haverá neste momento condições para concluir a construção duma terceira auto-estrada entre Lisboa e o Porto, no que se refere ao troço «final» do IC3, que vai desde Condeixa até à Mealhada, passando por Ceira, Coimbra e Souselas? Deverá ser essa a prioridade da nossa região? Dificilmente.
Exponho neste texto alguns argumentos em abono desta convicção, porque mais vale tarde do que nunca: não é correto abster-me de emitir opinião sobre esta matéria, na qual não intervenho como especialista em transportes ou autarca, mas como cidadã. Deliberadamente não entrarei em assuntos de cariz económico-financeiro ou jurídico, uma vez que o que me faz escrever é a necessidade de contestar duas teses frequentemente apresentadas, neste e noutros contextos, por jornalistas, autarcas e políticos, como se fossem verdades absolutas. 

Tese A: «Uma obra deve fazer-se se der empregos na construção civil».

Tese B: «Uma obra deve fazer-se se já só faltar um bocadinho para ela ficar pronta».


2. Argumentos contra a Tese A  


 À Tese A contraponho as seguintes ideias, assumindo a terceira uma posição de destaque, uma vez que explica o título que escolhi para o presente texto:

Em primeiro lugar, uma obra deve fazer-se se for útil e se fizer sentido, e há momentos em que algo faz sentido, outros em que não. Se não houver dinheiro não faz sentido, por isso antes de se lançar uma obra esse aspeto deve estar esclarecido.

Em segundo lugar, os empregos na construção civil não são mais importantes do que os outros, e sobretudo têm de se tornar úteis, algo que pode exigir mudanças. Se pomos todo o dinheiro numa nova auto-estrada, é de esperar que ele vá faltar para conservar as (auto-)estradas e os edifícios que já temos. Por cada obra nova arriscamo-nos a perder prematuramente outras já existentes, da mesma forma que por cada área de trabalho que se beneficia, outras há que ficam a perder. Se tal não resultar de saudável competição mas de enviesamento estrutural causador de injustiças e desperdícios, convém aprofundar o assunto.

Em terceiro lugar, «construção civil» é muito mais do que aquilo que sobre este conceito mais se diz nos media, os quais funcionam muitas vezes como veículo de relações públicas para as empresas mais bem posicionadas. Proponho portanto para este conceito a seguinte definição:

Uma obra é de construção civil se o que de mais relevante com ela se consegue é algo que sirva a sociedade, e será de construção incivil se o que de mais relevante ela produz for a destruição desse algo que serve a sociedade.

Mesmo esta definição se torna insuficiente à luz duma consciência ambiental mais ampla, que não contemple apenas as necessidades da sociedade tal como a conhecemos, mas também as das gerações futuras, incluindo de todos os outros seres que connosco partilham o planeta. Poderão os técnicos do ramo argumentar que é impossível construir sem destruir, que qualquer que seja a obra ou realização humana, sempre se destrói alguma coisa, havendo impactes ao lado de cada impacto. Porém, a palavra impacto é demasiado bem vista na nossa sociedade: o que tem impacto, por ser «chamativo», é invariavelmente encarado como positivo, mesmo que destrua. O lado B do impacto é o impacte ambiental, e esse pode ser desproporcionadamente elevado para o fim em vista, destruindo serviços mais importantes do que os benefícios trazidos por determinada obra.

3. Argumentos contra a Tese B  

Já quanto à Tese B contraponho os seguintes argumentos:

Em primeiro lugar, no caso duma auto-estrada parece-me adequado estabelecer como regra que ela fique «completa» até onde for feita, uma vez que se trata duma obra em extensão, e portanto de alcance variável. A sua não conclusão acarreta simplesmente a consequência de não se poder andar depressa em todo o seu percurso, mas apenas em parte dele. Neste caso o bom não é inimigo do óptimo, uma vez que permitir velocidades muito elevadas, com grande impacto em termos de ruído ou de poluição, às portas duma cidade, tem obviamente consequências negativas para a sociedade. Além disso, se o óptimo de uns é poder acelerar à vontade, o de outros equivale a não se ser obrigado a conduzir depressa, sobretudo às portas da cidade. Um excesso de auto-estradas pode portanto causar o isolamento, a imobilidade e a perda de autonomia de alguns utentes, porque há muito quem as evite ─ e refiro-me sobretudo à população idosa, cuja liberdade de conduzir em segurança não deveria ser cerceada desnecessariamente, sobretudo havendo já inúmeros locais onde se pode andar depressa.  

Em segundo lugar, se é fácil determinar que uma auto-estrada está concluída onde quer que ela termine (há auto-estradas compridas e outras curtas), já o mesmo não se pode dizer dum edifício semi-construído, que ou se implode (custa dinheiro apagar os erros do passado), ou se termina (o que também custa dinheiro). Trata-se aqui de duas realidades diferentes, a exigir uma ponderação também ela diferenciada: uma auto-estrada não terminada não deixa de poder ser usufruída, desde que possua acessos. Já um edifício sem janelas, portas ou telhados não é de todo utilizável. Neste caso não é sequer rigoroso dizer que se «construiu um edifício», porque o que quer que se tenha construído não passa duma construção inacabada. Ao contrário dum edifício sem telhado, que pode até existir mas não pode ser usado (e ao contrário dum romance lido apenas aos bocados, sem se perceber a história), uma auto-estrada não precisa de ser percorrida mesmo até ao seu hipotético ou planeado extremo para que se possa afirmar que é útil.

─ E que dizer de infraestruturas que não podem ser utilizadas porque outras de que elas dependem não chegaram sequer a ser construídas? Independentemente de os conseguirmos ler até ao fim ou não, uma coisa é certa: ter livros sem saber ler é como construir estações de comboios sem que exista a ferrovia! Precisamente por isso é que, em terceiro lugar, invoco aqui o caso das várias infraestruturas de embarque já construídas como apoio duma ferrovia que em dado momento deixou de estar prevista para a área urbana de Coimbra e arredores ─ a mesma região onde agora se quer construir o tal troço ainda «em falta» do IC3. Se essas construções já existem, mas ainda não têm utilidade, o que há a fazer é repor a ferrovia, mas irá em vez disso o dinheiro ser gasto em mais uma auto-estrada?   
  
Quarto argumento: poderia argumentar-se que entre o projeto do metro de superfície (que parece estar para ser retomado) e o da construção do IC3, a auto-estrada seria mais importante, uma vez que as pessoas em geral recorrem ao automóvel. Contesto: muitos até prefeririam, se pudessem, usar o comboio, pois dessa forma se pode ir tranquilamente a ler ou a escrever e o tempo gasto no transporte seria ganho em tranquilidade, produtividade e em cultura, ao contrário do que sucede com o automóvel, em que se fica impedido de trabalhar, a menos que por trabalho se entenda (não sem danos colaterais!) falar ao telemóvel enquanto se conduz, usando ou não o dispositivo «mãos livres».

4. Restantes argumentos

Tendo já discutido os dois principais pressupostos de autarcas da região em favor da conclusão do IC3 (ou seja, a tese A e a tese B), passarei agora a inventariar toda uma série de argumentos que aprofundam as considerações anteriores e que sustentam as minhas reservas relativamente à construção do troço supramencionado do IC3.

1.   Falando sobretudo com moradores potencialmente afetados pelo barulho e poluição causados pela rodovia na estrada dos Malheiros, apercebi-me de que a construção da dita auto-estrada não é tão consensual como se apresenta na imprensa.

2.   Disse-me também há tempos o presidente da Junta de Freguesia de Ceira, zona onde está previsto que termine o troço do IC3 a construir (incluindo um dispendioso viaduto ou túnel), que o impacto da referida construção naquela freguesia irá ser enorme, afetando o modo de vida de viveiristas há muito ali instalados, prejudicando igualmente uma paisagem que duvido possa ficar mais bonita se estrangulada por mais uma «obra de arte» (termo técnico para designar uma ponte ou viaduto unindo dois montes ou duas margens de um rio).

3.   Também não sabemos qual o impacto da crise económica no comportamento rodoviário, mas é notório que se viaja menos e que muitas pessoas evitam auto-estradas para não pagarem portagens. Questiono-me se os estudos de tráfego usados para justificar este tipo de rodovia ainda estão atuais.

4.   Porque é que não construimos antes ciclovias, que permitiriam poupanças significativas em muitos trajetos casa-trabalho, aliás fomentando com isso provavelmente mais viagens de carro nas auto-estradas ao fim-de-semana, e tornando-as mais comportáveis para os nossos salários? E se em muitas cidades europeias o limite de velocidade é de 30km/h em zonas residenciais, porque não aspiramos nós aos mesmos direitos a maior poupança, qualidade de vida e sossego?

5.   É duvidoso que a construção do troço em causa do IC3 traga benefícios relevantes para além dos empregos criados durante a construção. O facto é que mesmo empregos que antes havia nas auto-estradas têm vindo a ser cortados: agora o pagamento de portagens é feito por intermédio de máquinas, e não com a intervenção de um funcionário. Devemos premiar tais políticas?

6.   Os empregos na construção poderiam aliás ser disponibilizados em obras mais relevantes, como é o caso da recuperação do património, desde que com conhecimento avançado (por exemplo em argamassas antigas, para não se cometerem erros resultantes de excessiva pressa em mostrar «obra feita»).

7.   Há imensas outras actividades fortemente negligenciadas: quando se constrói uma infraestrutura rodoviária, é ainda hábito deixar os espaços adjacentes por arranjar, permitindo a sua inadequada apropriação por marginais ou delinquentes. Isso aconteceu na zona da Boavista, no local onde entronca a ponte Rainha Santa Isabel, espaço este há largos anos a carecer de arranjo urbanístico. Se tanto se quer acabar o que está por concluir, como se disse do metro de superfície e agora se diz do IC3, porque não se começa por estes pequenos arranjos que há bem mais tempo estão ainda por concluir?

8.   A construção civil não tem apenas a ver com grandes obras, mas com muitos minúsculos detalhes: quando se parte uma peça dum portão é necessário alguém que a consiga repor, e não alguém que nos forneça um portão novo. Um vidro partido duma lareira requer quem esteja em condições de o substituir, sem se ter de construir uma lareira nova. As chaminés precisam de ser periodicamente limpas e esse trabalho atualmente encontra-se a cargo dos bombeiros, que o fazem mais por boa vontade do que por tal ser exclusivamente competência sua.

9.   Além da ponte pedonal recentemente construída em Coimbra, em que os vidros já necessitam de ser reparados, há inúmeros muros e paredes antigas a precisarem de ser restaurados, muito asfalto por repor, muita sinalética relevante por colocar (e outra irrelevante por retirar), pinturas rodoviárias desgastadas, passeios cobertos de ervas. Uma cidade cromaticamente harmoniosa e segura é muito mais agradável do que a magnificência duma grande obra que apenas beneficia o ego e a bolsa de alguns, mas com a área circundante desleixada.

10.               Há cada vez mais pessoas idosas, com dificuldade em dobrar-se, desejosas de fazer pequenos jardins ou hortas nas imediações das suas casas, para que mais facilmente possam alimentar-se e com o dinheiro que poupam nesta «terapia florístico-nutricional» comprar eventuais medicamentos de que dependam. Haverá gente habilitada nas técnicas de construção de canteiros elevados, paredes e telhados verdes, hortas comunitárias em zonas urbanas, que as possam ajudar? Tudo isso são atividades em que a construção civil poderia desempenhar um papel bem mais relevante do que apenas o de disseminar por todo o lado cimento e asfalto, com os impostos de todos nós.

11.    A construção civil não tem que ser toda feita em betão: há técnicas que passam pela utilização de madeira, adobe ou até de telas têxteis. Cada vez mais necessitamos de obras que não sejam «marcantes» mas antes susceptíveis de libertar o espaço ao fim de algum tempo de utilização. Mais vale por vezes uma bonita tenda, desde que desmontável, reutilizável e reciclável, do que um elefante branco inamovível, que nos endivida até ao tutano.   


5. Interrogações finais

Se com tanta infraestrutura entretanto construída, e portanto com menos razões para isso, o poder político já por uma vez ousou adiar o projecto do metro de superfície, não será agora muito mais justificável adiar sine die a construção do referido troço do IC3, transferindo os fundos estruturais e os empregos com ele gerados para onde eles realmente fazem mais falta? Até que ponto estamos livres de que por falta de financiamento se ponha em causa a decisão recente de retomar o metro de superfície (ou algo que se lhe assemelhe)? Quantos proveitos, e a que preço, cabem afinal no saco da construção civil sustentável em Coimbra?